quarta-feira, março 21, 2007

SITE A.C.I.M.E.

O novo alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas pretende fazer uma pequena revolução na política de integração de imigrantes em Portugal. A palavra-chave é multiculturalismo, interculturalidade.

E parte deste princípio: devemos aceitar que pessoas doutras culturas, quando sentadas à nossa mesa, não sejam obrigadas a usar talheres. O responsável diz ainda que em Portugal, em todo o caso, não existem condições de exclusão social tão graves como as que geraram recentemente os motins em França.

Por Ricardo Dias Felner (PUBLICO) e Graça Franco (Rádio Renascença)

Rui Marques acredita que em Portugal se pode aplicar o modelo multicultural do Canadá. A ideia é respeitar a diversidade cultural de cada minoria, mas conseguir criar nestas comunidades um sentimento de pertença ao país que as acolhe.

PÚBLICO - Há sinais de que os últimos acontecimentos em Espanha e em França poderão provocar uma onda de xenofobia na Europa. Como vê este fenómeno?

Rui Marques - É evidente que existe uma onda de fechamento. A Europa está a viver um tempo triste em que se está a fechar numa concha, erguendo muros e barreiras à sua volta. A opinião pública espanhola era das poucas que se mantinham abertas, agora restamos praticamente só nós, os portugueses. Curiosamente, a mudança na opinião pública espanhola decorre não de medidas de um governo xenófobo e de direita, mas de políticas muito generosas e abertas de um governo socialista. Está a falar do processo extraordinário que legalizou perto de 700 mil Imigrantes clandestinos. Acha que esse processo teve um efeito de chamada que originou depois a pressão sobre as fronteiras de Melilla e Ceuta? Exactamente.

Mas os problemas em Melilla e Ceuta são anteriores.

Sempre existiram, mas só agora se assumiu um drama devido a um efeito de chamada muito grande.

Acha que Espanha, por exemplo, chegou ao ponto máximo de admissão de imigrantes?

Não creio. A possibilidade de entrada de imigrantes depende de cada país e de cada contexto, bem como do desenvolvimento económico e do estado social de cada país. Se tivermos consciência que o Canadá tem 19 por cento de imigrantes e que a Suíça tem 20 por cento, vemos dois exemplos que têm mais do dobro da percentagem de imigrantes do que Espanha. E são países, nesta altura, com total paz social. Sobretudo o Canadá, que é para mim a referência, o farol em termos de políticas de imigração.

Porquê?

Porque o Canadá assumiu de uma forma muito clara o verdadeiro modelo multicultural, ou melhor, intercultural: no sentido de uma dupla pertença. Propõe a todos os imigrantes que rapidamente atinjam o estatuto de plena cidadania, fazendo parte integrante da nação canadiana e assumindo-se canadianos, e ao mesmo tempo aceita e estimula a diversidade cultural. Estamos a falar de um país onde entram 250 mil imigrantes por ano, num quadro de 30 milhões de habitantes.

Mas no Canadá há cidades com quase 40 por cento de Imigrantes. O Canada e a Europa não têm contextos históricos e geográficos diferentes? Podemos Importar o modelo do Canadá para Portugal?

Temos a aprender com todos os países do mundo. E não tenho dúvida nenhuma que a Europa precisa de olhar para o modelo do Canadá. E precisa de voltar a ser a Europa, precisa de se encontrar com a sua origem e o seu fundamento. Aquilo que constituiu a Europa foi o seu princípio de solidariedade e de partilha de riqueza. A ideia em 1950, de Robert Schuman, era construir a paz a partir destas ideias e da existência de um núcleo de valores comuns e da aceitação da diversidade.

Mas esse modelo multicultural não foi já testado na Grã-Bretanha e na Holanda?

Há uma pequena grande diferença. É que aquilo que o Canadá cultiva como sentido de pertença à nação canadiana, nenhum país europeu, mesmo os multiculturais, o fizeram. É que o Canadá transforma todos os estrangeiros em canadianos de pleno direito.

A Grã-Bretanha e a Holanda tentaram fazer Isso, só que sem sucesso, porque são sociedades mais complexas...

Não tentaram.

O que significam então os polícias em Londres de turbante?

Isso é um passo extraordinário, é um bom passo. Mas, a meu ver, não simboliza tudo na construção do sentido de pertença. O grande desafio que se coloca às sociedades que têm de gerir a mobilidade humana, e basicamente são todas, e de o conseguirem incutir o sentimento de pertença de todas as pessoas à comunidade onde no momento estão. Isto é difícil, porque temos normalmente um raciocínio cartesiano, muito típico da influência francesa, que é este: "Ou estás connosco, és como nós, e pertences à nossa comunidade, ou se és diferente não pertences à nossa comunidade".

Quando eu convido alguém para almoçar comigo não é normal que eu exija que todos comam com talheres?

Não é obrigatório. Eu acho possível sentar à mesma mesa pessoas com registos culturais, históricos e religiosos completamente diferentes.

Com pratos diferentes, Instrumentos diferentes?

Exactamente. Em contexto global, é isso mesmo que temos que fazer. O grande perigo que corremos é querer que toda a humanidade se sente à nossa mesa comendo com os nossos talheres e com a nossa culinária.

É, portanto, favorável a um modelo multiculturalista. É esse modelo que vai aplicar no ACIME?

É, construir um Portugal intercultural. É verdadeiramente essa a nossa proposta.

Tem noção que vai começar praticamente do zero? É uma proposta nova. Vamos então a um caso concreto. Defende escolas só para algumas comunidades imigrantes, com currículos especiais?

Não, a interculturalidade não é isso. Isso são versões suaves de multiculturalismo, versões de segregação, de separação de diferentes comunidades.

Mas parece que a escola portuguesa não interessa muito aos filhos dos imigrantes...

É um preconceito.

O insucesso escolar nestas comunidades é um preconceito?

Mas o insucesso escolar não tem que ver com o interesse na escola portuguesa. Temos todos a ganhar com a aceitação da diversidade. De ver a realidade a partir do ponto de vista do outro.

Então defende o ensino Igual para todos?

Não, é outra realidade que também não é aceitável. O meu modelo de escola é também a aplicação do princípio Uma mesa com lugar para todos [título de um livro que o entrevistado publicou recentemente sobre imigração]. Ter um programa pedagógico e curricular comum, mas se se conseguir introduzir nesse programa os conteúdos da diversidade, explicar que existem naquela escola meninas e meninos que vivem de uma forma diferente, tanto melhor. Nacionalidade automática poderia incentivar/luxos ilegais-

O alto-comissário entende que a nova lei da nacionalidade é já um avanço importante. E que os filhos de imigrantes nascidos em Portugal só não têm esse direito automático porque isso poderia funcionar como uma forma de legalização perniciosa dos pais que estivessem em situação irregular.

A que se devem os problemas de integração dos filhos dos imigrantes?

É muito dificil para uma criança que nasceu aqui, e que sempre aqui viveu, ser tratada como estrangeira. É muito difícil ela entender por que é que, quando começa a jogar futebol federado, lhe pedem o visto de trabalho dos seus pais. Ou por que é que quando entra no comboio olham para ela de uma forma diferente.

Mas isso também não é uma generalização abusiva?

Um exemplo. Em Agosto, quando entrou um grupo de jovens de etnia africana num comboio da Linha de Sintra, a seguir ao chamado arrastão de Carcavelos, as pessoas começaram a saltar do comboio porque temeram um novo assalto, um arrastão. E era apenas um grupo de jovens pacato.

Como é que, então, se combate esse sentimento e se fomenta a integração desses jovens?

Desde 2001, temos feito um trabalho com o programa Escolhas muito sério. Temos 87 projectos espalhados pelo país e que envolvem mais de 20 mil crianças e jovens que vivem em circunstâncias de grande vulnerabilidade. Estamos a criar um conjunto de condições no combate ao abandono escolar, na ocupação de tempos livres, na formação para a literacia tecnológica, e na criação de laços com a sociedade de acolhimento, para que se possam integrar, para que possam ter oportunidades iguais a todas as outras crianças.

Esse discurso não é contraditório com o facto de o Governo não dar automaticamente a nacionalidade às crianças filhas de imigrantes que nascem em Portugal?

A aquisição da nacionalidade dá um contributo extraordinário. Eu só não acredito em respostas miraculosas. As alterações que foram feitas à lei da nacionalidade, e que serão aprovadas na Assembleia da República dentro de algum tempo, foram já um contributo muito importante.

As comunidades imigrantes, nomeadamente os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), protestaram veementemente contra ela...

Eu defendo que não devem existir imigrantes de primeira e imigrantes de segunda. Defendo que o prazo para pedir a naturalização deve ser igual para as pessoas dos PALOP e para todas as outras. E defendo que é altamente vantajoso que quem nasça em Portugal possa aceder imediatamente à nacionalidade portuguesa. Por isso, os ditos imigrantes de terceira geração podem aceder de imediato à nacionalidade portuguesa.

E porque é que isso foi negado aos jovens da segunda geração?

Se todas as crianças tivessem acesso à nacionalidade portuguesa, essa medida seria uma fonte de problemas. Abriríamos aqui a possibilidade de criar uma situação de apelo à imigração irregular. Porque a única solução decente, no caso dos pais serem ilegais, seria legalizar também os pais dessa criança.

Público

in Site ACIME

Sem comentários: